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Resenha: O corcunda de Notre-Dame

SOBRE O LIVRO

O Corcunda de Notre-Dame, publicado em 1831, é uma das obras mais conhecidas do escritor francês Victor Hugo — o mesmo autor do livro Os Miseráveis, já comentado aqui no site. Considerado um dos maiores nomes da literatura mundial, Hugo não se destacou apenas como romancista. Foi também poeta, dramaturgo, dentre outras atividades. 

Esse romance surgiu do desejo de Victor Hugo de chamar a atenção para o abandono do patrimônio histórico francês. A catedral de Notre-Dame, que hoje é um símbolo de Paris, estava em ruínas e ameaçada de demolição. Ao criar a história do Corcunda que habita a catedral,  Victor Hugo escreveu não só uma história notável, mas também enalteceu a arquitetura da Idade Média.

A trama se passa na Paris do século XV e entrelaça os destinos de personagens marcantes: Esmeralda, uma jovem cigana de beleza impressionante; Claude Frollo, o padre atormentado por uma paixão obsessiva; Phoebus, o capitão sedutor e covarde; e, claro, Quasímodo, o corcunda rejeitado pela sociedade, mas com um coração surpreendentemente sensível. É uma história de amor, intolerância, poder e, sobretudo, humanidade.

Desde seu lançamento, O Corcunda de Notre-Dame recebeu diversas adaptações para o cinema. Uma das versões mais conhecidas é a da Disney, de 1996. Trata-se de um filme de boa qualidade, mas que modificou aspectos essenciais da narrativa original.

A repercussão da obra foi tão grande que ajudou, de fato, a salvar a própria catedral de Notre-Dame. Além disso, o livro tornou-se um clássico por seus personagens complexos e pelos temas que continuam atuais: o preconceito, os conflitos internos e as contradições humanas.

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POR QUE EU GOSTEI DO LIVRO

Como um legítimo clássico, essa obra aborda com sensibilidade e profundidade temas universais e atemporais, como os conflitos entre desejo e dever, entre preconceito e amor, entre aparência e essência.

Os personagens são muito bem construídos. Acompanhar a trajetória de Esmeralda — descrita como uma mulher de beleza cativante e espírito astuto, mas que se deixa enganar por uma paixão inocente por Phoebus, um capitão boa pinta, mas sem caráter — já é por si só uma experiência marcante. Também achei digno de nota o perfil de Quasímodo: deformado, forte, ágil, mas com um coração que sabe amar. Já Claude Frollo, o arquidiácono, mostra como uma paixão egoísta pode corromper a alma. E os momentos de humor ficam por conta de Pierre Gringoire, artista e filósofo atrapalhado, que acaba se afeiçoando à cabra de estimação de Esmeralda.

Foi revelador perceber como a obra original é bem diferente da adaptação da Disney. Os personagens são basicamente os mesmos, mas o tom da narrativa e, principalmente, o desfecho da história são bastante distintos. O romance tem grande tensão psicológica, e a Disney suavizou esses elementos ao máximo.

Assista a uma boa análise sobre o livro, feita pela professora Tatiana Feltrin.

Outro aspecto que me chamou atenção foi o retrato da Idade Média apresentado pelo autor. Nessa época, tortura era legitimada por autoridades religiosas e governamentais, a mulher era alvo constante de preconceito, e as injustiças sociais eram naturalizadas. Tudo isso é abordado sem rodeios. Inclusive, a própria Esmeralda é vítima de perseguição por ser mulher, cigana e “diferente”. Além disso, o livro nos convida a admirar a beleza e a imponência da arquitetura medieval.

Uma observação importante: assim como em Os Miseráveis, Victor Hugo faz uma pausa na narrativa para descrever a arquitetura da Idade Média. Ele critica duramente o que considera a decadência da arquitetura de seu próprio tempo (século XIX). Fico imaginando o que ele diria se vivesse no século XXI! Esse trecho mais descritivo pode parecer cansativo para alguns leitores, mas meu conselho é: não desista da leitura. Hugo logo retoma a história e o enredo volta a prender a atenção. Além disso, esses momentos mais descritivos são ótimos para exercitar a imaginação — visualizar mentalmente as construções da época pode ser uma experiência bem interessante.

Outra boa análise do livro, da jornalista Isabella Lubrano

Em resumo, recomendo fortemente a leitura deste livro. É uma obra rica, sensível e que nos ajuda a refletir sobre muitos aspectos da vida e da sociedade. Sem dúvida, um clássico que merece ser saboreado com calma e atenção.

TRECHOS DO LIVRO PARA SABOREAR

“Ou antes, toda a sua pessoa era uma careta. Uma cabeçorra eriçada de cabelos ruivos, entre os dois ombros uma corcunda enorme cuja contrapartida se fazia sentir na frente; um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente desencontradas que só podiam se tocar pelos joelhos e que, vistas de face, pareciam dois crescentes de foices que se juntavam no cabo; pés largos e mãos monstruosas; e, com toda essa deformidade, certo ar de temível vigor, agilidade e coragem; estranha exceção à regra eterna que pretende que a força, como a beleza, resulta da harmonia. Era assim o papa que os loucos acabavam de eleger.”
(Descrição do Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame.)

“Num vasto espaço deixado livre entre a multidão e a fogueira, uma jovem dançava. Se essa jovem era um ser humano, ou uma fada, ou um anjo, é o que Gringoire, por mais filósofo cético e mais poeta irônico que fosse, não foi capaz de determinar num primeiro momento, tão fascinado ficou com aquela deslumbrante visão.”
(Reação de Gringoire ao ver Esmeralda pela primeira vez.)

“Estava de fato nesse temível Pátio dos Milagres […] cidadela dos ladrões, horrenda verruga na face de Paris; esgoto de onde se escapava toda manhã e aonde se voltava para apodrecer toda noite, essa vala de vícios, mendicidade e vagabundagem, que sempre inundava as ruas das capitais; colmeia monstruosa para onde voltavam de noite com seu butim todos os zangões da ordem social.”
(Retrato da desigualdade social em Paris. O Pátio dos Milagres era uma região periférica dominada por criminosos e miseráveis.)

“Ele percebeu que o homem necessitava de afetos; que a vida sem ternura e sem amor não passava de uma engrenagem seca, rangente e dilacerante.”
(Reflexão sobre o vazio emocional de uma vida sem vínculos afetivos.)

“Desde seus primeiros passos entre os homens, Quasímodo se sentira — e depois se vira — achincalhado, degradado, rejeitado. A palavra humana, para ele, era sempre uma zombaria ou uma maldição. Crescendo, só havia encontrado ódio ao seu redor. Ele o contraíra. Ele ganhara a maldade geral. Ele pegara a arma com que o tinham ferido. […] Havia, porém, uma criatura humana que Quasímodo excetuava de sua maldade e de seu ódio em relação aos outros — e que ele amava tanto, talvez mais, do que sua catedral: era Claude Frollo.”
(Quasímodo foi moldado pela rejeição. Mesmo assim, encontrou afeto em Frollo — figura que ele admirava, apesar de tudo.)

“Por isso tudo, Claude, mortificado e desanimado em suas afeições humanas, tinha se lançado com mais entusiasmo ainda nos braços da ciência — essa irmã que pelo menos não ri na nossa cara e sempre nos paga, ainda que em moeda algumas vezes sem validade, pelos cuidados que lhe foram prestados. Tornou-se, pois, cada vez mais douto e, ao mesmo tempo, por consequência natural, cada vez mais rígido como padre, cada vez mais triste como homem.”
(Aos poucos, Frollo abandona o afeto humano e mergulha na solidão intelectual, tornando-se uma figura amarga.)

“Todas as forças materiais, todas as forças intelectuais da sociedade convergiam no mesmo ponto: a arquitetura. Dessa maneira, a pretexto de construir igrejas para Deus, a arte se desenvolvia em proporções magníficas. […] Até Gutenberg, a arquitetura é a escrita principal, a escrita universal. Desse livro granítico começado pelo Oriente, continuado pela Antiguidade grega e romana, a Idade Média escreveu a última página.”
(Trecho da digressão de Hugo sobre a importância simbólica da arquitetura medieval.)

“A arquitetura foi, até o século XV, o registro principal da humanidade. […] A arquitetura é destronada. As letras de pedra serão sucedidas pelas letras de chumbo de Gutenberg. O livro vai matar o edifício. A invenção da imprensa é o maior acontecimento da história.”
(Uma das ideias mais fortes da obra: com a chegada dos livros impressos, a arquitetura deixou de ser a linguagem predominante da humanidade.)

“A arquitetura atual não exprime mais nada, nem mesmo a lembrança da arte de outro tempo. Reduzida a si mesma, abandonada pelas outras artes porque o pensamento humano a abandona, ela convoca operários na falta de artistas. […] Não se enganem: a arquitetura morreu. Morreu sem regresso, morta pelo livro impresso, morta porque ela dura menos, morta porque custa mais caro. Toda catedral é um bilhão.”
(Crítica severa de Victor Hugo à arquitetura de seu tempo.)

“Os instintos das mulheres se entendem e se respondem mais depressa do que as inteligências dos homens. Acabava de lhes chegar uma inimiga: todas sentiam isso, todas se uniam. Basta uma gota de vinho para avermelhar um copo d’água inteiro; para tingir de certo humor toda uma assembleia de mulheres bonitas basta a vinda de uma mulher mais bonita — sobretudo quando há um homem.”
 

“Por favor, senhores, procederemos ao interrogatório da cabra. Era ela, de fato, a segunda acusada. Nada mais comum, na época, do que um processo de bruxaria movido contra um animal.”
(Crítica irônica aos absurdos da Justiça medieval.)

“A boêmia, essa deslumbrante dançarina que havia tantas vezes encantado os passantes com sua graça, passou a não ser mais do que uma terrível feiticeira. […]
— Mãos à obra — disse Charmolue a Pierrat.
Pierrat girou a manivela, o brodequim apertou e a infeliz soltou um desses gritos horríveis que não têm ortografia em nenhuma língua humana.
— Pare — disse Charmolue a Pierrat.
— A senhora confessa? — perguntou à egípcia.
— Tudo! — gritou a miserável moça. — Eu confesso! Eu confesso! Piedade!”
(Esmeralda foi vítima de tortura pelas autoridades e obrigada a confessar um crime que não cometeu. Uma crítica dura à intolerância e à opressão.)

“Para uma mãe que perdeu seu filho é sempre o primeiro dia. Essa dor não envelhece. Por mais que os trajes de luto se desgastem e sejam lavados, o coração permanece negro.”
(Um dos trechos mais sensíveis sobre o luto e a dor que não passa.)

“A Justiça de então se preocupava muito pouco com a nitidez e a limpeza de um processo criminal. Contanto que o acusado fosse enforcado, era tudo o que ela precisava. Ora, os juízes tinham provas bastantes contra Esmeralda. Haviam acreditado que Phoebus morrera — e ponto final.”
(Crítica à superficialidade e brutalidade do sistema judicial da época.)

“Uma execução era um incidente costumeiro da via pública, como o forno do padeiro ou a matança do carniceiro. O carrasco não era mais do que uma espécie de açougueiro um pouco mais sombrio do que os outros.”
(Ilustração da banalização da violência na sociedade medieval.)

“Os dias se sucederam. A paz voltava pouco a pouco à alma de Esmeralda. O excesso de dor, como o excesso de alegria, é uma coisa violenta que dura pouco. O coração do homem não pode ficar muito tempo num extremo. A boêmia havia sofrido tanto que não lhe restava mais que o espanto.”
(Reflexão sobre como o ser humano se adapta até mesmo à dor mais profunda.)