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Resenha: livro Nação tarja preta

SOBRE O LIVRO

Nação Tarja Preta é uma obra lançada em 2023 e escrita por Anna Lembke, uma renomada psiquiatra e professora da Universidade de Stanford. No livro, a autora discute o crescente uso de medicamentos controlados na atualidade e as consequências desse fenômeno para a saúde física e mental. Lembke analisa como a dependência de remédios se tornou um problema de saúde pública, abordando o papel da indústria farmacêutica e as pressões enfrentadas pelos profissionais de saúde. A obra teve grande repercussão, tanto entre críticos quanto entre o público em geral, devido ao seu embasamento científico sólido e sua linguagem acessível até para quem não é especialista em psiquiatria.

No blog Sabores Literários, já publiquei um post sobre Nação Dopamina, outro best-seller da autora, que explora os desafios da era digital e a busca por prazeres imediatos. Nação Tarja Preta continua essa análise profunda do comportamento humano, focando nos perigos da automedicação e da dependência de substâncias prescritas.

POR QUE EU GOSTEI DO LIVRO

Gostei porque ele oferece uma compreensão mais ampla sobre as razões por trás das inúmeras prescrições de medicamentos. Muitas pessoas que conheço tomam regularmente remédios para ansiedade, depressão e dores físicas. Embora certos medicamentos sejam necessários em determinadas circunstâncias, o livro mostra que muitos médicos, por vezes, se precipitam em prescrevê-los, sem considerar adequadamente o impacto do estilo de vida na saúde.

Outro ponto que me chamou atenção é como a autora revela os bastidores das relações entre médicos, a indústria farmacêutica e governos. Muitas vezes, o lucro é o principal motor dessas interações, deixando de lado soluções de longo prazo para o bem-estar dos pacientes.

Achei também interessante a defesa de que cada pessoa é única e não deve ser rotulada ou medicada apenas por ter atitudes diferentes da maioria. A autora alerta que nenhum medicamento está isento de efeitos adversos, e que mudanças de hábito devem ser priorizadas antes de se recorrer a remédios.

Por fim, destaco a clareza com que a autora expõe um conteúdo denso e científico, tornando-o acessível ao público geral. Existe uma epidemia global de vício em medicamentos prescritos que muitas vezes não é discutida como deveria. Nação Tarja Preta traz à tona essas questões de forma clara e urgente, tornando-se uma leitura essencial. Recomendo!

Leia uma entrevista dada pela autora ao Jornal o Estado de São Paulo

TRECHOS DO LIVRO PARA SABOREAR

A questão é que os Estados Unidos, o Brasil e vários países do mundo estão cada vez mais confiando em um comprimido para lidar com o sofrimento humano, sem avaliar os custos a longo prazo ou cogitar que os comprimidos que aliviam a dor a curto prazo têm a possibilidade de torná-la pior com o tempo.

Remédios, em especial pílulas e comprimidos, são um grande negócio.

Sabemos que, quanto maior a influência e o contato que a indústria farmacêutica tem com os médicos, mesmo em encontros breves, maior a probabilidade de os médicos prescreverem essas drogas.

O que tenho descoberto no decorrer de meu trabalho é que os médicos e seus pacientes estão aprisionados em uma rede que não foi construída inteiramente por eles, e que forças além de seu controle os impeliram a se exceder na prescrição e no consumo de drogas prescritas.

Por ironia, conforme nossa vida foi ficando progressivamente mais confortável, fruto da modernização, do aumento do tempo de lazer e da menor ameaça de doenças e lesões, ficamos menos capazes de tolerar qualquer tipo de dor.

Todos nascemos com diferenças mentais e físicas inerentes. O que é surpreendente em nossa cultura atual é a prontidão com que essas diferenças são rotuladas como doenças e tratadas com um comprimido.

Médicos são, é claro, cúmplices desse processo, particularmente os psiquiatras, que ao longo dos últimos trinta anos têm recorrido cada vez mais às drogas psicoativas para lidar com o desconforto emocional de seus pacientes com sintomas psiquiátricos ou crises de vida

Às vezes você faz as coisas melhor quando está fazendo outra coisa. Se está escrevendo e de repente empaca, e então vai fazer um chá, enquanto espera a água ferver há boas chances de que surjam ótimas ideias na sua mente. Encontrar a melhor forma de escrever uma frase não é algo que você possa forçar; você precisa esperar que seu próprio julgamento lhe traga isso, e ele costuma atendê-lo, mas no devido tempo. Vale a pena fazer algumas interrupções, pois podem criar espaço para que algo funcione melhor no fértil subconsciente. Na realidade, certas dispersões são mais que úteis; podem revelar-se percepções e serem tão informativas e terem tantas camadas quanto os sonhos. E às vezes são elas que produzem empolgação.

Precisamos aprender a viver no mundo sem termos que superar nossas limitações usando medicação. Precisamos tolerar os altos e baixos normais de energia, de bem-estar subjetivo e de criatividade. (trecho adaptado).

Fibromialgia é só um termo médico inventado para pessoas que querem analgésicos”

Médicos e instituições de saúde são cúmplices na medicalização da pobreza que incentiva a criação de pacientes profissionais. Em algumas situações, a interação médico-paciente reduziu-se a pouco mais que um arranjo de negócios, no qual a meta principal é ajudar o paciente a garantir uma renda – como se fosse uma proposta financeiramente compensadora para hospitais e médicos.

De início, ela relutou em rotular os filhos como portadores de transtorno do déficit de atenção, pois preferia considerá-los como bagunceiros; mas o dinheiro – milhares de dólares por ano e cobertura automática do Medicaid (um programa social de assistência à saúde)– acabou se mostrando bom demais para ser dispensado.

Grupos de defesa de pacientes costumam ser bancados pela indústria farmacêutica

Hacking dá como exemplo o autismo, um transtorno de desenvolvimento raro em 1973, com 4,5 casos em cada 10 mil crianças, enquanto hoje os transtornos do espectro autista – por exemplo, os de nível 1 – têm taxa de 57 para cada 10 mil, o que abriu um debate a respeito do que pode ter contribuído para o aumento do número de diagnósticos.

Saber que há médicos que inequivocamente abdicam de suas responsabilidades éticas e profissionais para com os pacientes em razão de ganhos secundários é algo que envergonha toda a comunidade médica. No entanto, será que somos muito diferentes? O sistema de saúde inteiro foi tomado por um oportunismo típico de vendedor ambulante, e ganhar uns trocados virou o que impulsiona a prática da medicina. Mesmo aqueles entre nós que querem ajudar veem-se aprisionados em um labirinto de burocracia orientado à maximização do lucro. A enorme pressão que os médicos sofrem hoje para prescrever comprimidos, para realizar procedimentos e agradar seus pacientes, tudo isso dentro de uma burocracia médica desconexa e de olho no faturamento, tem contribuído para a atual epidemia de drogas prescritas.

“Não faz diferença se eu gasto muito ou pouco tempo com um paciente”, diz Susie. “Sou paga apenas proporcionalmente pelo que faço o hospital faturar. Se o crucial da minha interação com pacientes é uma conversa, eu perco dinheiro, porque falar não gera pagamento.”

Comprimidos que criam adicção (ou dependência) têm mais probabilidade de serem prescritos em excesso, porque oferecem satisfação em curto prazo e constituem um substituto para um vínculo humano, mas não propiciam necessariamente uma melhora na saúde. Quando a autonomia dos médicos é truncada e o status profissional está vinculado a ganhar poder e depende de enquetes de satisfação do paciente, eles se tornam vulneráveis a objetificar os pacientes como se fossem commodities, em vez de vê-los como pessoas. E os pacientes ficam vulneráveis a utilizar os médicos como mera fonte de obtenção de drogas