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Monte Castelo: A Bíblia, Camões e o amor

Sobre a música

Renato Russo era um compositor talentoso e com uma voz intensa. O grupo Legião Urbana, do qual ele foi vocalista e letrista, marcou as décadas de 1980 e 1990 com canções profundas e atemporais. Até hoje, suas músicas continuam sendo ouvidas e admiradas. Muitos consideram a Legião Urbana uma das maiores referências do pop rock brasileiro.

Uma das canções da banda que eu mais gosto é Monte Castelo. Nela, Renato nos mostra a complexidade do amor de uma forma muito original: usando citações da Bíblia, o clássico dos clássicos, e daquele que é tido como o maior escritor da Língua Portuguesa, Luís Vaz de Camões, que viveu no século XVI.

A música foi lançada em 1989, no álbum As Quatro Estações, em uma fase artística em que Renato Russo  mergulhava em reflexões profundas sobre a vida, a morte e, claro, o amor.

O título da canção faz referência à Batalha de Monte Castello, um dos confrontos mais violentos enfrentados pela Força Expedicionária Brasileira na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Interpreto essa escolha de nome como uma metáfora relacionada à nossa busca por um sentido maior para a nossa existência em meio ao caos do mundo contemporâneo e do nosso próprio íntimo.

No entanto, a característica que eu considero mais marcante nessa bela música é a forma como ela une dois textos famosos para falar do mais elevado dos sentimentos, o amor. A música cita o  texto bíblico de 1 Coríntios capítulo 13 e o soneto 11 de Camões.

Escute a música no YouTube.

Por que eu gostei da música

Gostei porque é uma música bonita e profunda. Sua letra nos convida a refletir sobre temas universais. Ela ressalta que, embora sejamos capazes de demonstrar o amor Éros — o amor romântico, movido pelo atração entre os sexos —, também temos a capacidade de manifestar o amor Ágape.

O amor Ágape é mais do que um sentimento; é uma escolha baseada em princípios. Está relacionado à vontade de fazer o bem, mesmo que isso envolva renúncias e sacrifícios. É o amor divino, elevado, que nos transforma e nos ajuda a ser pessoas melhores.

Além da riqueza da letra, gosto da música por sua melodia suave, que intensifica os sentimentos expressos na composição. A interpretação de Renato Russo é marcante: com sua voz versátil, ele evidencia com precisão as transições emocionais ao longo da canção. Renato consegue transmitir, em diferentes, momentos da música, tanto angústia e conflito íntimo quanto serenidade e elevação espiritual.

Monte Castelo é uma música para ser ouvida com atenção e sensibilidade!

Camões, autor do século XVI. Clique na imagem para ler o soneto 11 na íntegra.

ANÁLISE DE TRECHOS DA MÚSICA PARA SABOREAR

A canção começa com suavidade, nos conduzindo a uma reflexão sobre um amor elevado, espiritual, capaz de dar sentido à vida e aos relacionamentos:

“Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor, eu nada seria.”

Essas palavras foram retiradas da passagem bíblica 1 Coríntios 13:1. O apóstolo Paulo mostra que sem amor, todas as habilidades, dons e conhecimentos perdem seu valor. É esse amor — o amor Ágape — que deve ser a base de nossas ações. Em 1 Coríntios 13:4,5, o texto bíblico destaca as qualidades desse amor:

“O amor é paciente e bondoso.
O amor não é ciumento.
Não se gaba, não é orgulhoso,
Não se comporta de forma indecente,
Não procura seus próprios interesses,
Não se irrita com facilidade…”
(1 Coríntios 13:4-5)

Clique na imagem para ler 1 Coríntios 13 na Tradução do Novo Mundo: uma versão da Bíblia moderna, exata e fácil de entender.

Em seguida, a música muda de tom. A melodia se intensifica, a voz de Renato ganha dramaticidade e passamos para um outro polo: o amor terreno, carnal, cheio de contradições e conflitos. Aqui entram os versos de Camões, do Soneto 11:

“O amor é o fogo que arde sem se ver.
É ferida que dói e não se sente.
É um contentamento descontente.
É dor que desatina sem doer.”

Esses paradoxos expressam a paixão, intensa e confusa. É o tipo de amor que faz uma pessoa oscilar entre euforia e frustração. Um amor muitas vezes passageiro, que não nos eleva, mas nos consome. É a paixão cega, imprevisível, que pode fascinar e, ao mesmo tempo, ferir.

A música, nos demais versos, continua transitando entre esses dois polos — o amor Ágape (uma escolha) e o amor Éros (Um impulso). 

Monte Castelo é, assim, uma obra-prima que fala do  amor em sua forma mais terrena, mas também ressalta o tipo de amor que é divino, elevado. É realmente uma música que nos faz pensar, sentir e nos motiva a  ser pessoas melhores.